terça-feira, 25 de agosto de 2009

Para falar

Sou dessas, como outra qualquer
que carrega no útero o fardo de ser:
mulher.
Levo na face as rugas das colheitas
feitas
por minha mãe, avó.
A marca da lavoura de minhas gerações, do sim e suor
das submissões.
Criada no cheiro de terra, estrume
da cevada.
Pé descalço e machucado
das brincadeiras.
O balanço da corda e pneu
da mangueira.
Das unhas crescidas
que araram
a terra e a pele.
Apesar das tantas mãos
que amarraram
meus lábios,
saibam,
repito ainda mais forte:
não.
Já que sou assim,
filha de meu órgão.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Podemos conversar?

- Fiz uma escolha ruim.
- Era uma escolha que dependia só de você?
- Acho que sim... É estranho. Eu nunca deixei de ser minha, mas dei um pouco de mim pra alguém...
- Sim,
- Agora eu quero o que eu de volta, entende?
- Claro
- Era pouco, mas era meu.
- Você pode pedir de volta?
- Não... Isso nunca funcionaria.
- E se você pedir com educação?
- Sinto que é irreversível.
- Entendo... Mas você costuma se dá com facilidade?
- Pois é... Não. Dou apenas migalhas e quando dou uma fatia maior para alguém quase sempre me arrependo.
- Mas veja bem, se você der fatias fartas o que sobrará pra você?
- Já pensei nisso... Tenho medo das minhas fatias serem comidas de forma errada, entende?
- Claro.
- Por isso não sei se eu me dou.
- E se você se vender?
- Vender... Aí já não seria eu, eu não me venderia.
- Entendo...
- O que eu posso fazer por você?
- Se doar um pouco pra mim?
- Não, não posso.
- Mas..
- Nós mal nos conhecemos.
- Mas, mas... E se.. Sei lá... Tenho a sensação de que depois dessa conversa peguei um pouco de você pra mim.
- Mas eu não permito!
- É inevitável, desculpa.
- Não! Você vai sofrer um processo!
- Desculpa. Mas o que eu posso fazer?
- Estou ligando para o meu advogado vou exigir o que é meu por direito e que está agora em sua posse.
- Não quero ser presa! E... Além disso, também já me roubaram.
- Eu confiei em você.
- Eu também.
(...)

Estiagem

Era um mistério quando os olhos dela molhavam o ambiente, ele se perdia dentro da água morna da seriedade daquela moça. Ele fugia dessas pálpebras pesadas e limpas, se desconcertava, arrumava a gola da blusa para tirar a secura da garganta, porém o poder enigmático que brilhava naquelas duas bolas feitas de verdade era demais para sua vida medíocre.
A moça não era simples e chegar perto dela era como se aproximar de sua própria sombra. As pupilas molhadas encharcavam todo o seu interior, era a presença fálica de mulher que não sabia verdadeiramente de seus dotes. Assim, aos poucos, a canção do olhar molhava esse homem fraco. Ele era dela, mas ela não era dele e quando o pobre se afogou na nebulosidade daqueles olhos, tinha a certeza que nunca mais se secaria.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Menina jabuti

A dor se aconchegou em sua coluna. Instalara-se gentilmente por entre suas vértebras colorindo os ossos com luzes delicadas. Sentia-se distraída quando a corcunda pesava no lombo claro, fazendo o monte de dor maior que seus sonhos. Era um cupinzeiro entupido de lágrimas guardadas e lamentos sussurrados.
Enquanto os dias passavam ele percebia a elevação se encher cada vez mais, crescendo e se dilatando. No mar as ondas quebravam nas finas costas e a dor escapava num sorriso pálido e bonito. Ela já estava acostumada com a casca, era feliz com proteção da dor.