quarta-feira, 23 de agosto de 2017

caro anônimo

São José, 23 de agosto de 2017.


Hoje é quarta-feira e chove. Reparo o céu todo preto da minha sacada esfumaçada pelos caminhões. Retorno aos poucos, estive ausente. Totalmente fora, do outro lado, à margem. Volto a pegar os livros e a escrever. Volto a tocar no teclado para rascunhar em letras o desejo que não é falta, o desejo que é impulso, movimento, inconstância. Ando cansada. Leio notícias e me entristeço. É como se as partículas de resistência se dissolvessem na paisagem de cabeças que vejo diariamente. De gente que trabalha, que segue na estrada dia e noite. Por isso hoje, no meio da semana,  em meio a rotina tão familiar e constante, me vejo tomando café e pensando atônita: quero notícias de um desconhecido.
Espero uma carta anônima. Não precisa ter nome, nem endereço. Quero assim, que a carta me encontre no meio da semana com notas de notícias breves "estamos bem aqui e você?" "A Luíza já fala". " Sim, é verdade, são tempos estranhos, não?"

Aí tomaria mais um gole do café amargo, olharia novamente para minha janela para pensar em ti, caro anônimo. Na sua história, nas suas letras, nos seus garranchos. Imaginaria você assim: em sua casa, escrevendo para mim, pensando nas suas mãos amarelas de cigarro, ou no seu olhar atento ao relógio, ou até mesmo, na música que escutava enquanto escrevia suas notícias. 
Que coisa boba de se imaginar, não é? 
De fato, tenho coisas muito mais importantes para fazer: terminar minhas leituras, lavar a roupa, ou outras coisas mais sérias. (Quanta ironia nisso).
Mas é que tanta coisa séria anda me entristecendo, sabe? Por isso, a ficção românticas dos contistas, ou o erotismo ingênuo dos poetas, são coisas as coisas que mais me agradam nesse momento. Demoro-me mais nas verdades inventadas. Quero ler Monoel de Barros, uma vez e mais outra vez. 

Ando cansada da seriedade do mundo. Por isso estive fora, ausente, até de mim mesma. Eu andava muito séria. 
Queria mais leveza, por isso miro de longe as asas do pássaro que me carregam para o horizonte. Lá é bonito, tem muito tom de azul,  a gente se perde lá.  Namora o vento. O vento namora a gente. Vira história de amor, tem a surpresa da brisa, o turbilhão do vento sul, que levanta os vestidos todos.

É portanto, que estou aqui te dando existência enquanto te escrevo. 
Espero suas notícias, surpresas ou novidades, mesmo que inventadas. Porque já te inventei todinho anônimo, remetente, ou qualquer coisa parecida. 
É que ando ávida por notícias e histórias bonitas, querendo surpresas para as tardes frias daqui do meu apartamento. Por isso, não deixe de escrever tá bem?
Me fale dos seus filhos, dos seus desejos e da sua vida, que eu responderei em breve. 
Assim, ou quando, fantasiando daqui, do outro lado, te inventarei umas coisas, nada sérias. Um dia em que esperar atônita alguma novidade para o dia cinza, para os meus cafés, para minha escrita séria, 

com amor

Mirela. 

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

invade-me o tempo
em seus rios turvos
sinuosos
de curvas
minutos
horas
inunda-me o tempo
de hoje e outrora
como se pudesse rasgar o seu rio
mergulhando ao passado
do que fui
ao futuro do que serei
nas rugas das mãos
molhadas
vendo-me senhora
contenta-me, tempo
em sua paciência indócil
com os meus desejos
de cavalo selvagem
que sou
tentando atravessá-lo em galopes
de vento
seja-te tempo
em meu corpo, sua história
a face
de minha pele em suas dobras
trajetória
porque não sei de seus segredos
mais do que me mostra
sendo sempre esta
mas nunca a mesma
a qual,
demoradamente
te olha