É Sábado. Amanhece crescida, como se os
órgãos tivessem dilatado dentro do corpo. Amanhece grande, torta e desconhecida
de si mesma. Ontem quando deitou pensou “preciso reunir meia dúzia de
palavras”, “preciso escrever ”, “qual é o tema?”. Tenta se reorganizar, passa diante
do espelho e se olha, tudo normal por fora. Mas, por dentro, por dentro é onde
todo o perigo mora. É por dentro que as portas se abrem em espirais de
vertigem. É por dentro que os abismos aparecem no escuro, enganando a visão
para te pregar peças. Por dentro, é jogo de caça. Gostaria de pegar uma lupa
com câmeras para examinar tudo: das amígdalas à diante, e retirar, quem sabe? As
tripas, o pâncreas, fígado, e o coração. Pesá-los numa balança. Órgão por
órgão. Colocar tudo em cima da mesa e observar as fissuras, as dilatações e as
cores. E apertá-los, diminuí-los em máquinas de compressão. Enxugar a água e
deixar secando na mesa. Tirar todo o peso, para só depois enfiar tudo de volta.
“É possível crescer aos trinta?”. Arrasta-se pesada até a cozinha põe a água do
café para ferver e pensa “preciso reunir meia dúzia de palavras, preciso me
concentrar”. Coloca a comida do gato e observa a
janela “lá fora a chuva anuncia o outono”. “Poderia começar assim o texto”.
Passa o café e observa a vapor dançando no espaço. Bebe o café amargo. Abre bem a janela para
deixar a claridade entrar. Precisa escrever, mas o incômodo da noite paira
sobre os dedos. Escreve “Lá fora a chuva anuncia o outono”. E de repente, a
caneta passeia por toda a folha virgem num automatismo surpreendente, discorre
em letras tudo que vagueia em teus pensamentos. As sombras e os desejos
ocultos, que agora, tornam-se claros e expostos à luz dia, resplandecidos. As
folhas de papel crescem, parece que são vivas, ramificando-se em letras. Folhas
e folhas, caules, e flores, da semente ao esplendor do fruto. Comeria de tão
maduro. Do pequeno ramo até o mais robusto galho, sua escrita árvore não é de
outono, mas sim de primavera. Sua escrita se manteve em semente na terra até
ganhar voz corporificada no papel. Poderia discorrer florestas imensas e
repousar em teu poema, enquanto um outro vinga silenciosamente do outro lado da
página. Poderia se lançar, pendurando-se de um galho até outro, dona de todo o
verde selvagem plantado por tuas mãos na terra virgem do papel. Poderia pegar a
terra e cheirá-la, e senti-la húmida e fria entre os dedos. Poderia cavar os
pés e também virar raiz. Crescer dessa forma não era pesado, era vivo. Crescer
em verde na escrita de tuas florestas habitadas pelas letras era com crescer em
árvore, da raiz até a copa, da terra até o sol, e ser alta: empoderada. Para adentrar
em sua mata, qualquer um deveria de ser convidado, pelo prazer da leitura. Do
gozo compartilhado. Em tua escrita abundante e serena, das folhas que
viravam-se naturalmente ao som de teu corpo, escrita, finalmente, por um ponto
final. “Final de que”? Pergunta. Se tudo inicia-se pelo meio? Relembra do acordar
do dia, já se passa das 3 da tarde. Ainda não comeu. Os órgãos, enfim,
diminuíram. Diagnóstico precoce de um estranhamento dissecado pela faca aguda
da escrita. Agora, tudo se torna mais leve e fluido. Subir nas árvores, lhe
deixou mais leve. A lupa câmera para enxergar os olhos, já não é mais
necessária. Tem a certeza de que a poesia lhe é uma espécie de chapa
radiográfica. Mas ainda precisa reunir meia dúzia de palavras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário