Desvelar
a imensidão que habita nas palavras de José Saramago é como a experiência de um
mergulho ainda virgem na branquidão do ser, uma espécie de desvelamento da
alma, do homem e da mulher em seu estado bruto e puro, pela transparência mais
crua de seus próprios desencontros, que se desembocam na facticidade da ventura
humana, a qual paradoxalmente se revela por meio da própria cegueira.
Não faria parte, no entanto, do mistério
do ser essa eterna cadência de descobertas, que se florescem em espirais em uma
constante infinita entre o ser e o saber, falta e completude? A cada descoberta
nos deparamos com uma outra lacuna que busca seu sentido em outra descoberta e
assim por diante, pois na medida em que cerramos os olhos para abri-los novamente
após o mergulho, nos deparamos com “o espelho e os sonhos”, que para Saramago, “
são coisas semelhantes, é como a imagem do homem diante de si próprio”. E
quando o homem mergulha e se depara com a alma do outro que acaba por ser a sua
própria, por meio de reflexos de “espelhos e sonhos”, que moram imersos na
densidade profunda de um “mar de leite”[1], estaria
este, então, olhando a cegueira?
Há a percepção, portanto, da condição
humana como um espírito humano errante em sua busca eterna pela própria substancialidade,
pelo dom dado pela natureza que lhe permitiu caminhar sob duas pernas. O homem
que atravessa as linhas do tempo, irreversível e intolerante, na luta diária
com Deus, guiando-se por um discernimento que pondera de acordo com as ondas da
fortuna e do destino. Trata-se do espetáculo do embate humano, no qual o mesmo
se assiste, ferindo e sendo ferido pelas leis impostas por deus, e
principalmente, por ele mesmo. Pois não carregamos o sangue e a carcaça cansada
de Caim narrado por Saramago? Do humano enquanto um incansável andarilho, que
trilhou sangue em terra, marcando nossa história em tinta triste e vermelha?
Ao narrar à história de Jesus e de
sua missão, Saramago enfatiza as dúvidas acerca da ventura humana, por meio de
questionamentos atemporais que envolvem nossa conduta, como quando Jesus
desafia deus perguntando: “Vim saber quem sou e o que terei de fazer daqui em
diante para cumprir, perante ti, a minha parte do contrato”. E assim, Saramago
descreve o sadismo de Deus, na medida em que o criador coloca sobre Jesus o
papel de mártir, revelando-lhe o futuro de sangue de homens que o procederão. E
em uma das passagens mais belas e emblemáticas da obra “O Evangelho Segundo
Jesus Cristo” presenciamos o diálogo conflituoso entre Jesus e Deus, no qual o
criador afirma o dever servil de seu filho perante a sua autoridade: “ O único
Deus sou eu, eu sou o Senhor [...] Morrerão milhares. Centenas de Milhares.
Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de
gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol,
a gordura deles reclinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isso será
por minha culpa. [...] Pai, afasta de mim este cálice, Que tu o bebas é a condição
do meu poder e da tua glória, Não quero essa glória, Mas eu quero esse poder.”
Portanto, se a face de Deus se torna
clara em plena cegueira, o criador assistiria o espetáculo da antropofagia,
enquanto se clama “pai, perdoa-lhes pois não sabem o que fazem?” Presenciaria,
então, batendo palmas o devoramento de suas criaturas? Que com fome absoluta de carne, devoram-se e
mastigam uns aos outros. E é paradoxalmente na voz do próprio diabo que
Saramago diz, “é preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue”.
E
se somos descendentes de Eva e Adão, trazemos em nossa hereditariedade o
pecado, que nos foi ligado pelo cordão umbilical, do homem em peregrinação.
Descendentes de Abel que somos, como também do primogênito, não carregaríamos
também a marca de Caim? Pois talvez esteja em nossa testa a mesma marca do
castigo imposto pelo criador nesse filho, a qual condena “andarás errante e
perdido pelo mundo”. Assim compreendemos quando Saramago conclui que “ a história
dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende
a nós, nem nós o entendemos a ele.”
Tratando de nossa essência, do mais íntimo
âmago do segredo que envolve nossa carne de nervos, dores e afetos, vemos nos
traços e linhas de Saramago a existência que não se deixa se aprisionar ou se
denominar. Homens e mulheres que não se limitam a definições, mas apenas em
seus estados, talvez porque em tempos de cegueira não seja tão necessário a
definição e o nome. Talvez seja porque o contorno de nossa pele não se deixa
mais aprisionar, misturando-se com os outros e coisas, em uma só existência que
é a vida. E como narra Saramago em seu mais famoso ensaio “O médico só disse,
Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, com se
estivesse a ver-lhes a alma. A alma, perguntou o velho da venda preta, Ou o espírito,
o nome pouco importa, foi então que, surpreendentemente, se tivermos em conta
que se trata de pessoa que não passou por estudos adiantados, a rapariga dos óculos
escuros disse, Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que
somos.”
“Essa coisa” que está dentro e fora
de nós, que nos faz o que legitimamente somos, que não possui um nome, mas que é
tratada com tanto cuidado e veracidade na obras de Saramago. “Coisa” que
perpetua a condição do ser e que nos permite acreditar na esperança do milagre,
apesar da profundeza do abismo em que muitas vezes habitamos, nas ondas céticas
e espessas do “mar de leite” que envolve homem e mulheres.
Por meios de suas obras Saramago mostra acima
de tudo a essência da vida, como na obra “Intermitências da morte”. Pois qual
seria e o valor da espécie em um lugar delimitado por fronteiras de uma ordem
imortal, as quais a ordenam a condição de uma existência eterna? Existência que
aprisiona doentes e pessoas cansadas em um estado de decomposição em vida. E
por um capricho da morte, que em suas intermitências vagueia e estabelece as
leis de um estágio de uma vida mórbida, assistimos a imortalidade, que
inicialmente foi comemorada com júbilo até se tornar um terrível alarde, como
se fosse uma epidemia proliferada.
A personagem morte permite, assim,
que o homem habite o tênue limite entre vida e morte, em um estado perecível,
em um mundo paralelo e apático. E esse estranho estado me remete outra
epidemia, retratada por Gabriel García Márquez em “Cem anos de Solidão”, o
surto “da peste da insônia”, a qual aterrorizou os habitantes de Macondo. Epidemia que desfez os laços entre o homem e
sua memória, desfazendo assim sua própria história, na medida em que o sintoma
do esquecimento impossibilita o contato do homem com sua raiz e origem e até
mesmo com o presente, esquecendo os nomes e as coisas. Essa perda de referencialidade que dá o lugar
ao vazio impenetrável, a qual questiona o homem e seu lugar no tempo e espaço,
faz com que a vida seja vista por meio de lentes opacas, como se a existência
se sustentasse pelo presente destacado de seu sentido, em um estado e tempo
peculiares, como Saramago descreve seus doentes que não podem morrer dentro das
fronteiras da imortalidade ou como García Márquez descreve os moradores de Macondo infectados
pela insônia, os quais vivem em uma espécie de “realidade escorregadia”.
Esses estados que ambos escritores
narram, tanto o da lesão do esquecimento, como o da estranha existência de
pessoas que permanecem entre os limites de uma quase vida ou quase morte, na
qual que Saramago escreve em “Intermitências da morte” , são formas que
ultrapassam as fronteiras do imaginário e da ficção. Pois parecem tratar da
realidade da existência que permeia a contemporaneidade, uma zona indiscernível
no que se refere o homem, sua integração ao mundo, como o enigma que habita a sua íntima relação
com o outro, suas buscas e os mistérios
entre a vida e a morte.
A busca pela luz e pelo
esclarecimento, ou as formas de guerras, concretas ou ideológicas, nos
conduziram ao mal do desencanto que se reflete em uma espécie de inércia,
como caminhos que desaguaram no branco de nossa própria cegueira. Um
legitimo “Ensaio sobre a cegueira?” Estaria, portanto, a humanidade dormindo de
olhos abertos em sono profundo, mergulhada em seu própria morbidez, em sua
autoalienação. De forma que o ceticismo, como a perda de fé nas grandes revoluções,
nos fazem apenas contemplar o domínio da racionalidade técnica, a espécie de
Deus contemporâneo, que como afirma Adorno: “ela é o caráter compulsivo da
sociedade alienada em si mesma”. Portanto são também, através do olhos de
Saramago, que por meio de seus romances, percebemos o tamanho do abismo que
ainda percorre o ser e o seu desconhecido, seus instintos mais inerentes, como
também a história de seus caminhos em busca de suas inquietudes, que se entrelaçam
em narrações de amor, violência, desejo e esperança. Tais valores tecem as
redes das relações contemporâneas, mas ao mesmo tempo nos pertencem desde
tempos primórdios, como no antigo testamento revivido pelo filho rebelde Caim,
ou pelos caminhos traçados de Jesus no segundo evangelho. Estaria presente,
assim, a universalidade das obras de Saramago?
Por meio das palavras de Jesus,
Caim, ou de personagens sem nomes, Saramago coloca em questão a essencialidade
de todo homem e de toda mulher, ao se verem representados pela voz do próprio
cristo, o qual busca as respostas que fazem parte das indagações mais
elementares de nossa existência.
Haveria uma intimidade maior entre o
escritor com Deus, o diabo e com seus leitores? Assim, ainda podemos pensar em um limite de
distância, que separa o autor do leitor? Pois quando os olhos de seus leitores
repousam em suas linhas, o mergulho para a alma se dá da forma mais dura e ao
mesmo tempo afetuosa, por meio de um entrelaçar de mãos, as maduras e velhas mãos
de Saramago sob as outras, sob as nossas. E ultrapassando qualquer limite
estendido entre os continentes, ou entre o papel, a tinta e sua impressão, nos
transportamos para a experiência do milagre, que é o próprio encontro: de várias
vozes perpetuadas em histórias que são as nossas.
É a possibilidade do encontro que se
dá pela leitura, por meio do reconhecimento entre as “almas”, como diz o “médico
cego“, ou o “espírito” de acordo com o “velho da venda preta”, ou a “coisa”
como cita a “rapariga de óculos escuros.” Encontros que transcendem distâncias
e temporalidades, nas quais nos fazem reconhecer, ao ponto de possuirmos a
sensação de tocar as mãos de escritor de Saramago: seus afetos, paixões, dores,
sua visão política, ou seja, sua própria vida. E se nossa intimidade parecer
ser cada vez maior, posto que esta se revela eterna em suas obras, ainda
podemos sentir que Saramago se encontra nesse mesmo lugar, pois “não subiu para
as estrelas, se à terra pertencia.” Deste modo, sentimos e sentiremos a presença
imortal de Saramago no florescer de sua literatura nas futuras gerações, como
uma espécie de semente plantada nas linhas do tempo, que desabrocha em
constante “devir”, pois se trata de um presente doado para toda a eternidade.